domingo, 10 de maio de 2009

Uma ótima crônica sobre o capitalismo real

Por Gustavo Moreira:

Diretamente de um dos sebos do centro do Rio de Janeiro, garimpamos texto de um pensador que definitivamente não pode ser "acusado" pelos conservadores de radicalismo, sequer de ser um socialista. Isto não o impede de expor, impiedosamente, a desonestidade intrínseca ao sistema e outras de suas mazelas:

Vejamos agora como os mais ricos foram escolhidos para serem bem-sucedidos na vida. Isto nos traz imediatamente às ferrovias. Nada no século passado, e nada até agora no século XX, influiu tanto na sorte e fortuna de tanta gente, de maneira tão súbita, como a ferrovia americana e canadense. Os empreiteiros que a construíram, aqueles cujas propriedades se achavam em seu caminho, os donos da ferrovia, aqueles que a usavam para despachar suas mercadorias e aqueles que a assaltavam para roubar, todos ficaram ricos, alguns em apenas uma semana. As únicas pessoas ligadas às ferrovias que foram salvas do ônus da riqueza eram aqueles que colocavam os trilhos e dirigiam os trens. Trabalhar numa estrada de ferro no século passado não era um emprego bem remunerado, era ainda muito perigoso. A média de acidentes sofridos por aqueles que trabalhavam nos trens- a incidência de invalidez ou morte- chegava perto da registrada numa guerra de primeira categoria.
As ferrovias foram construídas. Muita gente honesta se empenhou a fundo em sua construção e funcionamento; isso não deveria ser esquecido. Mas o negócio também atraiu uma porção de malandros e vigaristas. Estes se tornaram muito mais conhecidos e talvez tenham sido os mais bem sucedidos em enriquecer. A seleção natural de Spencer funcionava maravilhosamente em favor dos canalhas e biltres de toda espécie. Às vezes até punha à prova uma casta de velhacos contra outra.
A ferrovia proporcionava uma interessante opção entre dois tipos de furto- furto aos usuários e furto aos acionistas. A luta mais espetacular ocorreu ao findar o decênio 1860-70, quando bandos rivais dessas duas artes básicas se defrontaram. Em litígio estava a ferrovia Erie, que corria das barrancas do rio Hudson, do lado do Estado de New Jersey, até Buffalo. Naqueles dias uma linha cujos trilhos deploravelmente enferrujados tornavam-na geralmente fatal. Cornelius Vanderbilt, que controlava a estrada de ferro New York Central, cujos trilhos corriam na outra margem do rio, queria adquirir a Erie para assegurar o monopólio do serviço ferroviário para Buffalo e, virtualmente, até Chicago. Todo o seu empenho foi no sentido de esbulhar o público. Aliás, a perene contribuição literária de sua família foi a expressão oral: "O público que se dane!".
Um de seus oponentes foi Jim Fisk, que morreu de ferimentos a bala em 1872 na tenra idade de trinta e oito anos, para desaponto geral dos americanos de melhor categoria que gostariam que tivesse sido antes. Seus aliados eram Daniel Drew e Jay Gould, dois outros experientes ladrões, embora Drew já estivesse fora de sua melhor forma. A função destes últimos era roubar os acionistas. Uma vez chegando ao controle da ferrovia, havia um sem-número de dispositivos pelos quais um indivíduo podia desviar dinheiro e outros patrimônios da empresa para seus próprios bolsos. Jay Gould foi reconhecido como sendo o mestre dessas técnicas. Fisk, embora não muito dado à meticulosidade provou ser mais imaginoso na prática de fraudes. O controle acionário era, entretanto, o segredo de ambas as formas de roubo. A luta pela ferrovia desencadeou-se em 1867 e originou o tipo de colisão que naqueles dias ocorria com mais freqüência nos próprios trilhos da Erie.
A grande vantagem de Vanderbilt era o dinheiro; ele o tinha, e com ele podia esperar um dia comprar o controle acionário de uma empresa. Mas Drew e Fisk levavam uma vantagem ainda maior. Eles controlavam a ferrovia; e tinham uma oficina gráfica no porão do edifício que abrigava os escritórios da ferrovia. Conseqüentemente, podiam imprimir mais ações do que Vanderbilt jamais poderia esperar adquirir e, além disso, mais ainda para assegurar-lhes o número de votos que os mantivessem no poder. Foi o que passaram a fazer. A força de sua posição, como se dizia na época, baseava-se firmemente na liberdade da imprensa.
Vanderbilt apelou para a justiça. Aí inicialmente levava certa vantagem; ele dominava George Gardner Barnard, membro da Suprema Corte do Estado de Nova York. Barnard, embora não fosse grande jurista, com freqüência era tido como o melhor que o dinheiro poderia comprar. E Vanderbilt o havia comprado. Em troca, Barnard proibiu as atividades editoriais do que se chamava de Erie Gang (a quadrilha da Erie) e ameaçou mandar seus componentes para a cadeia. Estes reagiram pegando os livros da ferrovia (sem esquecer-se do dinheiro em caixa) e fugindo para o outro lado do rio, para Jersey City. Jim Fisk, homem sentimental, levou consigo também sua amante, mulher não tão virginal, de nome Josie Mansfield. Dizia-se que os capangas de Vanderbilt poderiam raptar esses refugiados e trazê-los de volta sob a jurisdição do juiz Barnard. Por isso, foi recrutada uma força de defesa e enviada aos pátios de manobras da ferrovia, tendo também sido hasteada uma bandeira no novo centro de operações, o Hotel Taylor, que passou a chamar-se Forte Taylor. A Guerra da Erie, como veio a ser conhecida, estava no auge.
Do Forte Taylor, Gould, Drew e Fisk contra-atacaram. Numa manobra emocionante e audaz, eles compraram a Assembléia Legislativa do Estado de Nova York- ou, pelo menos, um número suficiente de seus membros para que as ações que haviam impresso fossem tornadas legais. Mais tarde, conseguiram comprar até o juiz Barnard, que assim abandonou Vanderbilt. Mais do que dinheiro estava em jogo; até batizaram uma das locomotivas com o nome do juiz. E uma aquisição mais importante ainda: compraram William Tweed- conhecido como "Chefe" Tweed- líder do Tammany Hall *, tornando-o um dos diretores da Erie. Vanderbilt bateu em retirada. Surgiu uma espécie de trégua. Fisk conseguiu trazer a sede da Erie de volta a Nova York, instalando-a no teatro lírico, onde conjugou a administração da ferrovia com espetáculos de ópera. As perspectivas pareciam sorrir-lhe quando foi morto a tiros por Edward Stokes, seu rival no amor de Josie Mansfield, embora, pobrezinha, ela demonstrasse estar mais que interessada em agradar a ambos ... O corpo de Fisk foi levado para Brattleboro, no Estado de Vermont, onde ele havia iniciado sua rumorosa carreira, tendo a cidade inteira ido recebê-lo na estação com honras de herói. Foi ali enterrado; quatro carpideiras de pedra zelam pelo seu jazigo. Uma delas parece estar derramando moedas sobre o túmulo.
Enquanto a guerra da Erie estava no apogeu, o expresso vindo de Buffalo certa noite teria, segundo se soube mais tarde, perdido quatro de seus carros de passageiros numa curva. Esses quatro carros haviam despencado num pequeno precipício, provocando lamentável incêndio quando bateram no fundo. Os vagões eram de madeira, aquecidos por bojudos fogões a carvão. Tanto os carros como seus ocupantes representavam um grande risco securitário. Mais ou menos um ano depois, um maquinista chamado James Griffin entrou com a sua composição de carga num desvio para deixar o expresso de passageiros passar para o oeste. Acontece que pegou no sono e sonhou que o expresso já tinha passado. Tirou o seu comboio do desvio e chocou-se de frente com o trem de passageiros. Houve outro desastre de grandes proporções, seguido de incêndio.
Como ocorrência normal, os vagões de carga da Erie descarrilavam ou simplesmente ficavam parados por falta de uma locomotiva em condições de puxá-los. Já que o principal objetivo dos administradores da empresa era espoliar os acionistas, também da parte destes não era de surpreender que houvesse contínuas e fundamentadas reclamações. Muitos dos acionistas eram ingleses, e nenhum deles recebeu dividendo algum. Tudo isto, além do fato de que os homens que trabalhavam na estrada muitas vezes ficavam sem receber o ordenado, deu a Drew, Gould e Fisk uma péssima reputação. Como já frisamos, esse trio entrou para os livros de história como a Quadrilha da Erie. A reputação pública de suas famílias, embora um pouco restaurada tempos depois, nunca chegou a ser exemplar.
Por outro lado, os homens que lesaram os seus clientes ou usuários de seus produtos ou serviços saíram-se muito melhor junto ao público, e suas respectivas famílias conseguiram alta distinção social. Isso se aplica a Vanderbilt. Foi o que aconteceu também em outros setores de atividade, onde encontramos os nomes de Rockfeller, Carnegie, Morgan, Guggenheim, Mellon, que fizeram fortuna produzindo a baixo custo, suprimindo a concorrência e vendendo caro. Todos eles fundaram dinastias da mais alta reputação. Todos se tornaram, com o passar do tempo, nomes extremamente respeitáveis. A questão é interessante e talvez algo fácil de prever. Esbulhar os investidores- outros capitalistas- foi algo que ficou atravessado na garganta do público. Mas a rapinagem pública- o esbulho do povo em geral-, embora criticada na época, com o tempo adquiriu um aspecto de alta respeitabilidade, de elevada distinção social. Mesmo durante suas vidas, muitos dos mais notáveis praticantes dessa técnica granjearam a reputação de impolutos homens de bem, tementes a Deus.
*Tammany Hall é um tradicional diretório do Partido Democrático em Nova York, conhecido por sua escusa influência política.

(GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. São Paulo: Pioneira, 1980, pp. 41 a 48)

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